Je vous Salue Marie: um filme cheio de graça
Annie Goldmann
Tradução: Mário Laranjeira
O perfume de escândalo que cercou o lançamento do filme de Godard obscurecen o seu verdadeiro significado. Considerado sacrílego por alguns, incompreensível por outros, a polêmica ocultou a profunda espiritualidade, evidente, entretanto, desta obra. Como sempre, Godard surpreende ao mesmo tempo pela novidade de sua abordagem, pela forma original e pela audácia da mensagem.
Diante do mistério da natividade de Jesus, Godard simplesmente perguntou a si mesmo: como contar essa história em nossa modernidade? Como contar um acontecimento tão extraordinário que se deu a 2 mil anos e que é o fundamento de fé de milhões de indivíduos no mundo e, principalmente, como contá-lo em função dos modos modernos de comunicação?
Enquanto Pasolini, com O Evangelho segundo São Mateus, permanece no registro são-sulpiciano da reconstituição histórica e da mensagem tradicional cristã, Godard tenta dela fazer a narrativa como se estivesse se dirigindo a crianças da nossa época, habituadas com os heróis das séries televisionadas e com a leitura das histórias em quadrinhos. É por isso que transpõe o maravilhoso cristão para o mundo imaginário de hoje, mistura de Pieds Nickeles e de Star Trek. Em vez de um anjo do outro mundo, Gabriel é um homem comum, que viaja de avião; já não é só e seráfico, mas pragmático e acompanhado por uma garota maliciosa, como a heroína de Alice no País das Maravilhas; a estrela dos Reis Magos é substituída pela bandeirinha de um carro-socorro; Maria é filha de um frentista e membro de um time de basquete, e José é motorista de táxi... Gente simples, comum, exatamente como eram os pais de Jesus no tempo de Herodes. O lugar já não é o campo primitivo, mas a cidade com as suas atividades - o trabalho de José, as relações humanas, as relações difíceis entre os homens e as mulheres, uma cidade alheia aos mistérios da fé, onde Maria vai encontrar-se sozinha para enfrentar o seu destino em meio à indiferença e ao ceticismo que caracterizam o mundo moderno. Esta opção de atualizar o acontecimento tem por função recolocar a problemática da mensagem cristã no mundo de hoje e não mais relegá-la ao museu imobilizado da instituição religiosa; os cartões repetitivos e insistentes Naquele tempo servem para marcar, ao mesmo tempo, a intemporalidade e a contemporaneidade do acontecimento. Ao transportar rigorosamente a natividade para o mundo atual, Godard atualiza por isso mesmo a mensagem milenar e lhe confere perenidade.
Eis por que as duas personagens principais estão bem situadas em sua época e vivem os conflitos de um casal moderno: José tem um caso com outra mulher e Maria duvida do seu amor.
Entretanto, de acordo com a tradição, Maria é jovem, inocente e virgem. Diante da incapacidade da ciência para explicar a sua milagrosa fecundação, a moça vai aceitando pouco a pouco o inacreditável por caminhos outros que não os da razão. Como imaginar, em nossa época, semelhante acontecimento e como fazê-lo aceitar aos outros? A princípio há a expectativa: a jovem espera algo de extraordinário: "Indagava-me se algum fato notável ia acontecer na minha vida" pois, contrariamente aos homens, "todas as mulheres desejam alguma coisa que seja única neste mundo". Em seguida, após a Anunciação, ela vai aos poucos assumindo o seu destino e descobrindo uma outra dimensão na vida, uma dimensão secreta que não pode partilhar com ninguém, porque cada um deve fazer a sua própria descoberta da espiritualidade. "Quero que a alma seja corpo e não se poderá dizer que o corpo é alma (...) Não mais haverá sexualidade em mim, conhecerei o discurso verdadeiro da alma." Mas Maria é feita de carne humana, tem desejos de mulher e a castidade que se impõe lhe pesa. Nua na cama, vê-se a braços com o desejo, como todas as mulheres; e trava um combate desgastante contra a tentação; daí as alusões à masturbação recusada, que são talvez chocantes, mas que se inscrevem perfeitamente no projeto godardiano de tornar viva e credível a personagem. Tais tentações não empanam a espiritualidade de Maria, ao contrário, é pelo combate contra si mesma que atinge o mistério do espírito e se eleva em relação aos outros. Se tudo lhe fosse dado, se tudo lhe fosse fácil, o seu mérito seria menor. A sua ascese não está definitivamente adquirida, é o resultado de um esforço sobre a carne, sobre a vida cotidiana. Godard transgrediu a imagem tradicionalmente passiva de Maria, simples receptáculo da Palavra, simples instrumento da Divindade, para lhe dar uma consciência, uma elevação pessoal que a coloca acima de todos os outros. Ela adquire, enquanto mulher, uma verdadeira grandeza; ela é cheia de graça.
(...)
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